sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Compro ouro, jóias e...Poesia!

Com certeza você já viu alguém distribuindo papeizinhos na rua com os seguintes dizeres: “Compro ouro e jóias”.
Mas não sei se devido ao meu presente de amigo oculto, ou ao filme do Angelopoulos que assisti dia desses, tive esse estranho sonho que agora narro a vocês.
Eu era um comprador de ouro, jóias e... Poesia. Trabalhava numa sala grande com um cofre enorme, mais ou menos parecido com aquele de “Onze homens e um segredo” na versão atual. Nele guardava dinheiro e jóias e muitos, muitos pedaços de papel manuscrito com versinhos, sonetos, trovas e até declarações de amor.
Duas moças distribuíam panfletinhos na rua cantarolando “Compro ouro e Poesia/ Do João e da Maria/ Compro ouro e poesia”.
Meu nome era Aléxis, e eu recebia as pessoas dizendo: −Ouro, poesia ou os dois?
Vinham pessoas de todas as idades, mas eu (Aléxis) só aceitava peças originais, tanto as jóias quanto a poesia. O critério de avaliação era mais ou menos assim: Eu lia as poesias ou que quer que fosse que tivesse sentimentos reais e dizia às pessoas “−Esse vale um anel de ouro...” “−Esse vale...um brinco de pérolas...” “−Esse vale um colar...” e pagava às pessoas que saíam com um sorriso cintilante e a promessa de voltarem em breve.
Recebi a visita de dona Dalva, uma senhora de 78 anos. Veio trazer-me um manuscrito com sua letra insegura (dona Dalva sofria de catarata). O sonho não me revelou o conteúdo do texto, mas sei que era algo que somente alguém com tamanha experiência de vida poderia ter escrito.
−Esse vale um brinco de pérolas.
Disse eu, ao que dona Dalva prontamente retrucou.
− Ah, meu filho, nem precisava...
Após três horas e quarenta minutos de conversa, dona Dalva finalmente levantou-se para ir dizendo que ainda tinha que preparar o jantar e passar roupas, mas prometendo, como sempre fazia, voltar em breve com “mais algumas coisinhas que escrevo”.
Thamires era uma menina nova, uns 19 talvez 20 anos, não muito expansiva beirando a timidez. Fiquei surpreso com sua visita, pois ela realmente não fazia o tipo que gostasse de escrever. Trouxe-me um álbum de figurinhas do “Amar é...” dizendo que já havia passado daquela fase e queria se desfazer dele.
Não resisti à tentação de olhar para poder entender por que ela acharia que aquilo pudesse ser de meu interesse. Acontece que o álbum era todo comentado, e embaixo de cada figurinha havia uma interpretação e uma referência a algo que ela havia visto ou escutado falar. Divagações juvenis misturadas a belos sonhos adolescentes.
−Vale um anel de brilhantes.
Afirmei.
Thamires olhou para o álbum uma última vez e suspirou profundamente. Fez o seu rito de passagem, pegou seu pagamento e foi-se sem olhar pra trás.
Raphael era um menino de mais ou menos onze anos de idade. O brilho em seus olhinhos contrastava com a pele muito negra e combinava com seu sorriso enorme. Veio me dizer que queria comprar um presente de natal para Angélica, uma menina do colégio que, segundo ele, era seu grande amor.
Perguntei o que ele tinha pra mim e ele respondeu que não era muito, mas talvez pudesse ter algum valor. Mostrou-me uma carta escrita para Angélica em duas folhas de papel de caderno, que pareciam ter sido arrancadas recentemente. Talvez até hoje mesmo, para que ele pudesse me trazer.
Comecei a ler aquelas folhas...”Angélica. Você é minha melhor amiga. Eu gosto de você porque você ri de tudo o que eu faço. Lembra naquele dia em que a gente tava jogando bola? Outro dia fui jogar no campinho e lembrei de você...”
O sonho não me revelou todo o conteúdo da carta, mas eu (Aléxis) a li por um bom tempo, fazendo uma pequena pausa ao terminar.
Uma lágrima rolou de meus olhos. Levantei-me, acompanhei Raphael até o cofre, olhei-o e disse:
−Pegue tudo o que quiser...

8 comentários:

Anônimo disse...

nossa...

texto belissimo!

Anônimo disse...

Genial. Muito complexo e com personagens bem definidos em pucas linhas.
Gostei muito, mas seu Blog ficou um poco "sério" demais.

ઇ‍ïઉ Nίnfα ઇ‍ïઉ disse...

Muito lindo ... adoreiiiiiiiii...
bjs grande amigo...

Unknown disse...

O amor é realmente um sentimento nobre mas o carnal não tem muito disso. Como disse Augusto dos Anjos: "O amor é espírito, é éter, é substância fluida". Bonito, CLAP, CLAP, CLAP. Mas como vivo mais do amor carnal e esse não vale um anel de pedra falsa, continuo achando que o amor em versos é muito mais sedutor do que o verdadeiro amor.

Anônimo disse...

Vou dar uma de Dr.Freud.
Você compra ouro e poesia, mas só o que te interessa é a poesia, o que se escreve. (Você só narra os escritos que “comprou”.)
E toda poesia vale muito, você sempre a troca por jóias valiosas.

Como saber se elas são originais?
Você sabe porque você é os personagens que criou: Dona Dalva, Thamires e Raphael.
A senhora de idade com sua vasta experiência, a jovem com suas divagações e belos sonhos e o menino de brilho nos olhos e sorriso enorme.
Por que você coloca um preço/valor aos escritos das duas, mas não aos do menino? O que, nesse menino, não te deixa determinar um preço/valor aos seus escritos? Afinal, você se diz um comprador!
Pense, pense ...

Outra questão: Você não nos revela uma palavra das duas mulheres, mas narra um trecho da carta de Raphael.
Das duas, coisas não específicas; de Raphael, uma história específica com nome e tudo.

Um pouco sobre os nomes:
Raphael (hebraico) – Deus o curou, curado por Deus
Angélica (greco-latino) – pura como um anjo, mulher perfeita
Aléxis (greco e latino) – que se defende. Variação de Alexandre

Você pode não acreditar, mas sempre existem razões para nossas escolhas, mesmo que não estejamos conscientes delas.
Por que você escolheu especificamente esses nomes?
Além de carregar Deus no nome, Rafael também é o nome do arcanjo da cura.

Professor disse...

Na verdade Lou, esse Alexis vem Léxis - Palavra em Grego

Anônimo disse...

O que você quis dizer, então?
Já que o prefixo grego "-a" significa 'privação', 'negação'?

Anônimo disse...

Muito bonito o texto...

Para mim, o mais interessante foi que você se metamoforzeou do idoso passando pelo jovem até chegar a criança, invertendo o valor que comumente é dado ao conhecimento, valorizado pela maturidade, pelo que foi apreendido...
A criança é a imagem da inocência, da sensação, daquilo que não têm memória, moral ou conhecimento. Utiliza-se de critérios vitais.

Realmente... se a criança estava alí, havia nela uma necessidade vital... assim ela precisava pegar o que ela quizesse...